segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Não convence! - elogio do mau ator

Três passagens:

O grande teatro de Oklahama vos chama! E chama só hoje, só uma vez! Quem perder a oportunidade agora, a perderá para sempre! Quem pensa no futuro nos pertence! Todos são bem vindos! Quem quiser ser artista, apresente-se! Somos um teatro que pode aproveitar a todos, cada qual em seu lugar! Quem decidir juntar-se a nós receba aqui e agora as nossas felicitações!
Franz Kafka, Amerika

Ah, como era fascinante! Como ela gostava daquilo! Como amava sentar ali e assistir a tudo! Era como uma peça de teatro! Era exatamente como uma peça de teatro. Quem não acreditaria que o céu, ao fundo, não era pintado? Mas foi só quando um cãozinho marrom entrou trotando solenemente e depois saiu lentamente, tal como um cãozinho de “teatro”, um cãozinho que fora drogado, que a Srta. Brill descobriu o que tornava tudo tão emocionante. Estavam todos num palco. Não eram apenas a platéia, não ficavam só assistindo; estavam também atuando. Até mesmo ela tinha um papel e vinha todos os domingos. Não havia dúvida de que alguém teria notado se ela não estivesse lá – afinal, ela fazia parte do espetáculo! Contudo, aquilo explicava por que ela fazia tanta questão de sair de casa exatamente à mesma hora, todas as semanas – assim não se atrasaria para o espetáculo – [...] Estava no palco.
Katherine Mansfield, Senhorita Brill

Assim como o dramaturgo cria um drama a partir de um punhado de personagens, assim construímos, com as peças de nosso eu despedaçado, novos grupos com novos jogos e atrações, com situações eternamente novas.
Herman Hesse, O lobo da estepe



Denis Diderot, em seu ensaio Paradoxo sobre o comediante, defende uma idéia a respeito do trabalho do ator:
o ator (ou o comediante) deve ter uma grande penetração psicológica mas nenhuma sensibilidade, e deve ser perito na arte de imitar todos os tipos de caráteres e papéis. Se o comediante fosse sensível, lhe seria permitido atuar duas vezes um mesmo papel com o mesmo calor e o mesmo sucesso?, pergunta o filósofo. Bastante caloroso na primeira apresentação, continua Diderot, ele estaria extenuado e frio como um mármore na terceira. Ao passo que o imitador atento e discípulo atento da natureza, na primeira vez que se apresentar no palco sob o nome de Augusto, de Cina, de Orosmano, de Agamenon, de Maomé, copista rigoroso de si próprio ou de seus estudos, e observador contínuo de nossas sensações, sua interpretação, longe de enfraquecer-se, se fortalecerá com novas reflexões que terá recolhido; ele se exaltará ou se moderará, e com isto você vai ficar cada vez mais satisfeito. Já os comediantes, na vida real, pelo fato de não serem mais que imitadores, quando não são bufões, são polidos, cáusticos e frios, faustosos, dissipados, dissipadores interessados, mais impressionados por nossos ridículos que tocados por nossos males; têm um espírito bastante sereno ante o espetáculo de um acontecimento lastimável, ou ante o relato de uma aventura patética; são isolados, vagabundos, à mercê dos grandes; têm poucos modos e nenhum amigo.

por outra via, Peter Zsondi regustra que, no drama absoluto, a relação ator-papel de modo algum deve ser visível; ao contrário, o ator e a personagem têm de unir-se, constituindo o homem dramático.

Partindo destes dois horizontes, podemos pensar algumas coisas para o primeiro teatro que Heller encontra como sendo a sua vida. O teatro do mundo, em que todos representam papéis, parece ser o teatro constituído por atores que se fundem às suas funções, ou personagens, sem, no entanto, estar envolvido nelas, preservando uma espécie de separação entre função e afeto. é bem paradoxal mesmo, quando pensamos que o ator deve aparecer como um e conservar-se internamente dois. algo como um ator cientista de laboratório, um ator de gabinete. Cada coisa no seu lugar. Uma técnica poderia realizar esta operação. O bom ator, com isso, seria o homem dramático, envolvido e ausente.
O mau ator é aquele que não controla suas emoções. são aqueles indivíduos que, pela falta de domínio de si próprios, deixam vazar outras tantas expressões que, de algum modo, perspectivizam a própria atuação.
No teatro dos homens dramáticos que lidam perfeitamente com a tarefa paradoxal a que são submetidos, Harry destaca-se por não conseguir deixar de se envolver afetivamente no mundo. Harry não se encaixa no próprio Harry, seja no início como auto-crítica, seja no final como multiplicação de Harry´s.
A partir disso, o que temos é uma revelação constante, através da atuação de Harry, da ficção, do teatro. Harry é o primeiro a mostrar o teatro por não conseguir se enquadrar nele. Harry não convence. Harry mostra o ridículo de tudo, por atuar de modo ridículo. Está na ordem dos bufões, cáusticos e frios, faustosos, dissipados, dissipadores interessados. O ridículo da cena vem de Harry. Ele evidencia o ridiculo da situação por não conseguir dançar conforme a música.

Em Kafka, não havia saída.
Em Hesse, há um outro teatro.

Neste outro teatro, cada teatro é um personagem. Harry, com isso, não tem que atuar no espetáculo do mundo. Harry deve fazer de si o seu próprio teatro. Se o mundo é um teatro, porque eu também não posso sê-lo? Se sou teatro, sou mundo. Sou então ator-teatro-mundo-personagem. Eu sou mundo porque sou teatro. Sou personagem não porque estou inserido em uma fábula de outrem. Sou personagem porque crio os meus próprios personagens. Crio meu tempo, meu espaço, minha iluminação, meu cenário, meu diálogo, minhas rubricas, meus atos, meu entre-atos, meus prólogos, meus epílogos, minhas pausas, meus públicos, enfim, crio o teatro de mim.

O mau ator não convence. O mau ator não engana ninguém. Das duas, uma: ou ele tenta infinitamente convenver; Ou ele recusa-se a convencer em um teatro para criar, produzir, devir teatro. Aí então a relação ator-papel é substituída pelas multiplas relações ator-luz, ator-cenário, ator-música, ator-figurino, ator-objeto, todas produzindo o ator-teatro.

E se o ator é teatro, ele é a sua própria plateia. nesse sentido, a plateia tradicional torna-se prescindível. o que resta ao nosso bom e velho público? Resta a eles tornarem-se teatro, eles próprios. Neste momento o palco vira platéia. E o espectador é o seu próprio ator. Um mau ator.

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